É possível alinhar a proposta feminista com o evangelho?

Essa é uma questão que levanta muitos questionamentos e tabus dentro do âmbito religioso. Muitas mulheres, por seres cristão, não acreditam que possam lutar pelos seus direitos e se denominar feministas nesses meios. Em entrevista concedia ao jornalista Edson Caldeira do site Metrópole de Brasília, Valéria Cristina Vilhena, Cofundadora da EIG, responde essas e outras questões sobre ser evangélica e feminista.

Veja a entrevista abaixo:

Edson: É possível alinhar a proposta feminista com o evangelho?

Valéria: É possível sim, desde que se compreenda que toda escritura fora construída dentro de um contexto histórico sócio-cultural-econômico, isto é, a bíblia não foi ditada por Deus ou dada pronta em certo momento único da história. Foi uma construção à medida que levou séculos (o Antigo Testamento e o Novo Testamento) para ser definitivamente fechado e considerado – o que se selecionou, como canônico, como sagrado, como inspirado. No entanto as hermenêuticas, as interpretações que são feitas no decorrer dos séculos é de suma importância porque são teologias, dogmas que sustentam e controlam milenarmente todo o Ocidente.

Edson: Você acredita que exista uma teologia feminista?

Valéria: Nisso não preciso acreditar ou não. Ela existe. Está aí para ser lida, refletida, estudada e etc…queira você concordar ou não, isto já é outro ponto e eu diria que bem importante. Conheça, leia, reflita, estude tanto para concordar ou para discordar. O que não pode ocorrer é a discordância sem o conhecimento.  Há várias teólogas, biblistas feministas luteranas, metodistas, presbiterianas independentes, católicas, batistas produzindo teologia feminista e de muito boa qualidade do ponto de vista da exegese bíblica. As mulheres estão se posicionando como cristãs e feministas, ou seja, estão dizendo aos homens que sempre estiveram no comando da história: – não vamos abandonar nossa fé para pensar, para fazer teologia, isto é, não reproduziremos teologias medievais como vocês  fazem, teologias que não contextualizam a exploração de mulheres e homens que viveram e continuam a viver de forma injusta, desigual, sujeita a todo tipo de violência. Teologias que não refletem e nem recuperam a imago Dei das e nas mulheres, nas milhares de empobrecidas e empobrecidos,  nas negras e negros,  índias e índios.

Edson: Como lidar com a pauta das mulheres na igreja? O que você acha da postura (muitas vezes reticente) dos pastores para abrirem o tema para discussão?

Valéria: Interessante você dizer “reticente” porque é o silenciar sobre o tema. Mas o que ocorre do meu ponto de vista é que este silenciamento por parte destes pastores é o fato de dar continuidade ao silenciamento das mulheres. Sua posição é de, ao nos calar, calamos as mulheres?! Isto é gravíssimo. Porque quando você cala as mulheres você está calando e se calando diante de inúmeras violências perpetradas sobre nós mulheres na religião cristã. E uma das ferramentas é pela reprodução de teologias medievais, como dissemos anteriormente, teologias que não respondem as necessidades de nossos tempos. Teologias construídas sob bases misóginas, sexistas, portanto machistas. Mas também classistas, xenofóbicas, homofóbicas e etc. É preciso sempre considerar a história de nossos povos. Somos todos frutos de uma colonização exploratória-genocida-escravocrata-cristã.  Esta é nossa base, por isso a importância de construirmos novas bases de pensamento.

Edson: O papel da mulher no sentido bíblico envolve temas polêmicos no contexto atual. Um exemplo disso é a submissão? Como você enxerga/interpreta a submissão feminina no evangelho?

Valéria: É um tema que gosto muito, sabia? Porque temos a oportunidade de problematiza-lo, de questionar suas bases, de perguntar por que, para quem, em que contexto histórico e social fora dito e etc. A partir daí caberia uma análise feminista do texto sagrado cristão. Então poderão argumentar, mas não se pode fazer análise feminista do texto cristão, mas pode se fazer machista? Porque nenhuma literatura é neutra. Nenhuma narrativa é neutra. Nenhum discurso é neutro. Nada é neutro. E seria importante lembrar que o feminismo não é o oposto do machismo. O machismo está dentro de um sistema cultural-político-econômico que rege a sociedade, enquanto que o feminismo é composto por movimentos de mulheres no decorrer da história em busca de equidade.

Edson: Um dos temas imprescindíveis em fóruns de igrejas que tratam a pauta das mulheres é o aborto. Qual é sua opinião sobre o assunto?

Valéria: Não sei se poderia concordar com você ao dizer que “Um dos temas imprescindíveis em fóruns de igrejas que tratam a pauta das mulheres é o aborto.” Será? Se fosse o tema estaria sendo debatido, refletido, discutido; o que acontece é normativo: – É pecado, Deus condena e ponto. A minha posição seria: é pecado não faça! Mas não imponha a toda uma sociedade que está preocupada em combater a alta mortalidade de mulheres, especialmente negras e pobres que morrem ao tentar fazer aborto clandestino. Eu me posiciono assim por um simples fato, o de que minha crença, neste caso de que é pecado, deva ser imposta, principalmente via políticas públicas (que é uma das maiores pautas da Bancada Evangélica).

Crença é para ser vivida e não para ser imposta em uma sociedade legalmente laica. Quando na sociedade há uma discussão, especialmente do âmbito da saúde pública, porque as mulheres dão entrada no SUS já com hemorragias, isto é, já com risco de vida e muitas morrem é um problema primeiramente de saúde pública e precisa ser enfrentado. E não pode ser encarado, tratado a partir de minha fé. Não é argumento e não é solução, porque diante de uma sociedade machista onde muitas mulheres são abandonadas por homens, traídas, violentadas (atente que 406 mulheres por dia dão entrada no SUS vítimas de violência doméstica); atente que muitas mulheres que abortam já tem outros filhos, são casadas. Atente para que ainda, em pleno século XXI, muitos homens não são criminalizados pelo aborto, como se as mulheres tivessem engravidadas sozinhas, atente…atente… então não está sendo discutido, não é pauta em fóruns, as mulheres não estão sendo ouvidas, os dados não estão sendo expostos. Deveria estar. É necessário estar, mas não está. Não se olha pelo viés da saúde pública, mas pelo viés religioso, ou seja de um Deus cristão que não é o Deus de toda a sociedade, a sociedade é laica! E as políticas públicas não podem estar aí para responder a partir de um sistema de crença, mas as políticas públicas precisam atender, responder a demandas da sociedade como um todo. Agora se o aborto for descriminalizado e legalizado não será obrigatório – as cristãs e os cristãos continuarão em seu posicionamento de fé e não abortarão. Mas tenho mapeado um dado importantíssimo pela EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero, que recebe relatos de violências sofridas pelas mulheres evangélicas, a de que o aborto também é feito por elas, mas com muita culpa. E carregam estas culpas sozinhas, porque os homens deixam a seus encargos, exatamente para não sentirem responsáveis – o que é de uma hipocrisia e irresponsabilidade sem tamanho.

Edson: Você já sofreu algum tipo de preconceito por ser feminista e cristã?

Valéria: Sou feminista por ser cristã evangélica pentecostal. Este é meu berço cultural, minha raiz social. Sou primeiro cristã. Esta foi a base para toda construção de papeis sociais e determinações construídas por eu ser mulher evangélica pentecostal em uma sociedade machista. E não ao contrário. A minha pertença religiosa fez toda a diferença nesta construção social. Busquei, posteriormente, teorias feministas para compreender tantas injustiças chanceladas pela bíblia contra as mulheres e então percebi que não precisaria ter sido assim. Mas foi, a história está aí para comprovarmos. A questão que não mais queremos seguir neste caminho de opressão e violência.

Edson: Você acha que ainda existe muito sexismo nas igrejas?

Valéria: Infelizmente é o que mais vemos. Seja nas pregações, nos aconselhamentos pastorais, nas teologias (normalmente reproduções medievais), na insistência do impedimento de as mulheres estarem à frente, nos espaços decisórios da igreja, nas lideranças, nos espaços de poder mesmo. No texto da submissão poderia se fazer muitas perguntas ali, mas vamos perguntar somente o que seria para as mulheres serem submissas a homens que a amassem como Cristo amou sua igreja e deu a sua vida por ela. Que amor seria este? Justamente aquele que não cabe subalternidade, violência. Um amor que dá sua própria vida é um amor que não arde em ciúmes, não deseja e nem faz o mal, amor de entrega, de troca, de cumplicidade…de vida e não de morte.  Os homens continuam a querer decidir por nós. A falar em nome de Deus contra nós. A nos negar direitos iguais. Por quê?

Edson: Para você qual é a concepção errada que muita gente ainda faz sobre feminismo e fé em Cristo?

Valéria: Muitas mulheres jovens ou não tem demonstrado que é possível continuar a ser cristã, mesmo aderindo ao feminismo. Mesmo porque o movimento feminista é composto por muitas linhas de pensamento feminista. É um movimento plural. Nem todas as feministas convergem em todos os pontos. Há divergência. E isto só nos enriquece, porque consegue responder a mais demandas sociais. Mas há um ponto comum: a igualdade entre homens e mulheres. O olhar para além das diferenças biológicas, ou seja, as diferenças biológicas não podem justificar injustiças, violências, desigualdades de oportunidades. Nem tão pouco a bíblia pode ser base para isso, porque é violento- toda desigualdade é violenta. O feminismo pauta-se em direitos humanos, no resguardo da dignidade humana para homens e mulheres independentemente da diversidade humana que nos diferencia. O feminismo é forma de luta política e a bíblia tem muitos textos que pautam por estas lutas pelos mais pobres, os desfavorecidos, os injustiçados, as minorias.  O profeta Amós por exemplo, trabalhador do campo, dentro de um momento de apogeu do Reino do Norte não pôde, enquanto profeta, se calar diante da exploração dos pobres.  No reinado de Joroboão II a população sofria com a sobrecarga de tributos, com jornadas de trabalho excessivas, não havia equidade social. E o olhar de gênero (categoria de análise das teorias feministas) e não a absurda e vazia “ideologia de gênero” criada por um padre católico e adotada pela bancada evangélica e inculcada -, sob a política do medo, nas igrejas, nos dá um instrumental de possibilidade de análise denuncista a ponto de perguntarmos sobre as mulheres diante deste contexto do profeta Amós. E vamos perceber através do levantamento do contexto-histórico-social a condição desvalida, ainda mais miserável das mulheres diante dos homens. O sistema patriarcal (machista) na qual as mulheres se encontravam e no qual os textos foram escritos e até hoje validados sem análises aumentavam as vulnerabilidades das mulheres para além da pobreza denunciada pelo profeta. Esta é (dentre outras) uma importante contribuição dos estudos feministas tanto para a sociedade, quanto para a teologia, denominada de teologia feminista.

Valéria Cristina Vilhena é autora do livro “Uma Igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas”, graduada em teologia, mestre em Ciências da Religião e Doutora em Educação, História da Cultura e Artes.


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