Machismo na igreja: ontem e hoje – Parte 1

No dia 07 de Novembro de 2019 o Serviço Assistencial Dorcas em parceria com a Segunda Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte promoveu uma mesa redonda para a discussão da temática “Machismo na igreja: vamos conversar sobre isso?” Na ocasião, a doutoranda Karen Colares, que tem feito pesquisas na área das Teologias feministas desde o Mestrado, trouxe ponderações sobre a realidade da Igreja brasileira no que se refere ao machismo e algumas das contribuições propostas pelas Teologias que articulam com premissas dos movimentos feministas. Segue sua fala:

Começamos nossa discussão por um dado, uma estatística. O Brasil é um país marcadamente cristão. Dizer isso demanda certamente alguns esclarecimentos. O primeiro deles é que cada vez mais, o Cristianismo que se apresenta em território tupiniquim não se identifica como pertencente à tradição católica. O último censo do IBGE (2010) atestou crescimento de 61% no número de cristãos que se declaram evangélicos. Isso, notoriamente insere uma série de novos elementos no cenário geral. A despeito da diversidade e das divergências a marcarem ambas as tradições, permanecemos podendo dizer do pano de fundo de concepções, imaginário e discursos normativamente cristãos, seja de uma vertente ou outra. Um item de significativa relevância em qualquer confissão cristã que se preze é o uso da Bíblia ou como se deseje chamar, as Escrituras judaico-cristãs. Ela é utilizada de diferentes formas e com ênfases completamente distintas em ambas as tradições, no entanto, marca lugar privilegiado nas diversas declarações e práticas propostas.

Tal constatação faz emergir outra questão: Se a sociedade que nos cerca pode ser percebida como sexista e misógina e está desde suas origens, embebida de reflexões cristãs, o uso que se faz das Escrituras no que se refere à relação entre os sexos tem sido acertado? A história de interpretação cristã reiterou preconceitos sexuais? Certamente. Nesse sentido, existe uma significativa dívida para com as mulheres no bojo das interpretações bíblicas. Já no período entre os Testamentos, atesta-se o nascimento de leituras que cuidaram de culpabilizar todas as mulheres como ‘Evas’ pela entrada do mal no mundo. No Período Patrístico, a virilidade foi encarada como caminho para a perfeição e assim salvação, instando às mulheres que abandonassem qualquer sensualidade que lhes dissesse respeito. Na Idade Média,  da escassez de elementos para interpretar os problemas e angústias internas decorrentes da vida continente, se multiplicaram os interditos que tolhiam a liberdade das mulheres e lhes controlavam gestos e corpos, comportamentos. A sexualidade recebeu nesse período olhares de suspeita e assim, a mulher se tornou uma temida inimiga a separar o homem de seu Deus. Perseguições às ‘bruxas’ iniciadas na Idade Média explodiram no séc. XVI, em uma articulação de discursos médicos, jurídicos e posteriormente, literários que cuidaram em propagandear a inferioridade do feminino.

Não há como nos esquivar. Muitas interpretações bíblicas cuidaram em apertar o nó advindo de concepções sexistas. Entretanto, é necessário diluir certo mal entendido muito recorrente: o que chamamos patriarcado não é uma exclusividade da cultura judaica, na qual nasce o Cristianismo. As sociedades mediterrâneas da Antiguidade eram marcadas pela divisão espacial, divisão estrita de papéis de gênero com consequente limitação da esfera pública e privada em relação aos sexos e escândalo da fala pública para mulheres. Assim, a acusação frequente de que a religiosidade judaico-cristã seja a origem desse tipo de organização social e as lógicas a ela atreladas, desconhece, por exemplo, o patriarcado romano e o intrincado conjunto de assertivas que cuidavam de manter mulheres sob a esfera de poder de um ‘pai’.

Esclarecido esse ponto, é essencial dizer que, fazer uma reflexão feminista não se trata de sexismo às avessas. Machismo e feminismo não são equivalentes. A palavra que pode ser equiparada à noção machista é ‘femismo’. Em muitos momentos, a acusação de estar apenas trocando a elevação de um sexo por outro, ofusca o horizonte do que realmente se pleiteia e não leva suficientemente a sério as consequências desumanizadoras das estruturas patriarcais. As perguntas levantadas a partir de uma visão específica de mundo são profundamente alteradas quando uma nova referência é erguida e é aqui que fica evidente que a religião bíblica tem sido fonte de opressão e de libertação concomitantemente.

Falar de feminismos é notoriamente um debate cercado de fortes emoções, bem como de pronunciamentos baseados em sentenças do senso comum. Muito se propaga acerca da não concordância de muitos setores do amplo e diversificado movimento cristão acerca das premissas defendidas pelos movimentos feministas. Dizer da não concordância, entretanto, pede mais especificidade, tendo em vista que é mera ilusão a ideia de um movimento monolítico. Antes de qualquer outra coisa, é preciso que se entenda que existem feminismos diversos e com arcabouços teóricos muito diferentes. A despeito desta pluralidade, uma nuance se mantêm constante: a noção inalienável de que as mulheres são pessoas em toda a amplitude e desdobramentos práticos do termo. A coisa parece óbvia, embora não seja de forma alguma. A articulação de muitas comunidades de fé, embora procure reiterar a igualdade de homens e mulheres no que se refere à dignidade e liberdade, jamais permitiu que se averiguasse em que medida suas práticas tornavam tal paridade concreta.

O que propõem as leituras feministas a partir do Cristianismo?

Historicamente a trajetória de reflexão cristã acerca do ser humano foi marcada em muitos momentos pela predominância do sexismo e misoginia que estava presente na cultura mais ampla. Em muitos aspectos, o Cristianismo em nada se diferenciou dos preconceitos relativos ao sexo feminino, muito pelo contrário, tratou de reiterar uma série deles com argumentos de suas escrituras e assim, criou em torno de certas concepções a noção de que estas se tratavam na verdade, da vontade divina. Em muitos textos bíblicos o que está em cena em muitos momentos, é a marca cultural que qualquer escrito, mesmo aquele considerado de inspiração divina, possui. Assim, o diálogo entre Cristianismos e Feminismos tem muito a oferecer. As teologias feministas, também muito diversificadas, oriundas da década de 70 vêm procurando construir tal ponte e suas propostas emergem como um desafio e auxílio no escopo da relevância do discurso cristão:

Resgatar a história das mulheres que estiveram presentes em inumeráveis narrativas bíblicas e que foram invisibilizadas por uma redação androcêntrica.

Conhecer as próprias raízes históricas tem sido fonte de força para povos e grupos que foram subalternizados. Assim, devolver as mulheres à história e a história às mulheres constitui uma fonte de energia para a subversão do presente. Não se trata aqui de procurar apenas os textos bíblicos que trazem personagens femininos, mas de conseguir encontrá-las no centro da história. Ou seja, não é porque as mulheres não são citadas em vários momentos históricos, que elas efetivamente não estiveram presentes. Essa ausência consiste muito mais em um artifício retórico de uma seleção redacional cujo cerne é androcêntrico. É preciso pensar história para além de uma ‘narração das coisas tais quais foram’ e perceber a intencionalidade de quem escreve, bem como do público ao qual se dirige.

Parte 2

Karen Colares é doutoranda em Teologia da Práxis na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Mestra em Teologia Sistemática pela mesma instituição. Pesquisa a relação entre interpretações das Escrituras judaico-cristãs e discursos de dissimetria de gênero. Contato: karencolares5@gmail.com

Karen Colares


Deixe um comentário